São Thomas More contra o Fascínio da Autoridade
Thomas More em Família |
A dificuldade de respeitar a consciência alheia sem, contudo, abdicar da própria é um dos desafios mais substanciais da vida intelectual e moral. Aparentemente, trata-se de uma contradição: como alguém pode afirmar sua posição diante de autoridades reconhecidas sem incorrer na falta de humildade? Com efeito, a humildade manda reverenciar o saber e a experiência de outrem; mas a fidelidade à verdade impõe que ninguém abdique de sua consciência pessoal. Além disso, a prática desse discernimento é ainda mais penosa, porque ir contra a maioria nos priva do apoio mimético das convicções partilhadas: é estar só, sem referência externa, no vazio em que a consciência singular se afirma.
Esse drama aparece com clareza em uma das cartas de Thomas More à filha Margaret, quando ele relata o argumento do Arcebispo de Cantuária, Thomas Cranmer. O raciocínio do prelado era engenhoso: se More não condenava a consciência daqueles que haviam jurado, é porque o assunto não era de certeza absoluta, mas duvidoso. Ora, diante da dúvida sobre a legitimidade do juramento e da certeza do dever de obediência ao rei, a conclusão deveria ser simples: seguir a via segura da obediência ao príncipe e prestar o juramento.
A resposta de More constitui, a nosso ver, um dos momentos mais espetaculares da história da humanidade. Ele mesmo narra:
Now all was it so that in mine own mind methought myself not concluded, yet this argument seemed me suddenly so subtle and namely with such authority coming out of so noble a prelate's mouth, that I could again answer nothing thereto but only that I thought myself I might not well do so, because that in my conscience this was one of the cases in which I was bounden that I should not obey my prince, sith that whatsoever other folk thought in the matter (whose conscience and learning I would not condemn nor take upon me to judge), yet in my conscience the truth seemed on the other side. Wherein I had not informed my conscience neither suddenly nor slightly but by long leisure and diligent search for the matter. And of truth if that reason may conclude, than have we a ready way to avoid all perplexities. For in whatsoever matters the doctors stand in great doubt, the King's commandment given upon whither side he list soyleth all the doubts.
Note-se a sutileza da construção. More reconhece, num primeiro momento, que o argumento o deixou abalado: “in mine own mind methought myself not concluded”. Numa tradução com sabor etimológico, ele sentiu-se “fora de si”, não concluso em seu próprio juízo. Em seguida, porém, surge o yet adversativo, que parece contradizer o que acabara de afirmar, mas na verdade aprofunda o paradoxo: apesar de a mente vacilar diante da autoridade e da sofisticação do raciocínio do arcebispo, justamente esse vacilo mostra-se suspeito. O “ainda assim” (yet) marca a oposição entre o movimento momentâneo da alma, deslumbrada pelo brilho da autoridade, e a estabilidade da consciência formada.
Aqui está o núcleo da explicação: a verdade não se alcança “fora de si”, na oscilação súbita da mente sob pressão de outrem, mas sim “dentro de si”, na permanência da consciência cultivada pela investigação paciente. O yet é para dizer que, justamente por estar fora de si, More não tinha condições de julgar sobre a verdade da deslumbrante figura do arcebispo e dos oráculos que saíam de sua boca. Nosso autor distingue, portanto, duas dimensões: o vai-e-vem das impressões imediatas e a voz sólida da consciência, que se ergue como um outro, pretérito e confiável, em relação ao eu presente vacilante. Essa consciência não é improvisada, mas fruto de long leisure and diligent search for the matter — longo tempo de estudo e de busca diligente pela verdade.
A opção de More por permanecer fiel à opinião formada em longo estudo lembra a célebre decisão de Ulisses de se amarrar ao mastro para resistir ao canto das sereias. Assim como Ulisses reconhece que a sedução das vozes encantadoras pode desviar o navegante do caminho seguro, More reconhece que o enlevo do argumento do prelado, sua eloquência e autoridade momentânea, poderia levá-lo a abandonar o juízo firme de sua consciência. Ambos demonstram que a liberdade moral não consiste em ceder ao primeiro impulso ou à pressão externa, mas em criar vínculos com a verdade — seja por meio de cordas literais, no caso do herói grego, seja pelo compromisso com a própria consciência, no caso de More — capazes de sustentar a integridade frente às seduções passageiras.
Assim, a consciência em More não é mera opinião subjetiva, mas resultado de uma forma deliberativa rigorosa. É justamente por isso que ela se encontra em pé de igualdade com as demais autoridades, sem ser esmagada pelo peso numérico da maioria nem pela eloquência de um prelado eminente. Respeitar os outros, sem condenar suas escolhas, não implica aderir contra a própria consciência, pois esta, formada com cuidado, tem dignidade própria. Só uma consciência individual assim, cultivada e estável, pode resistir ao fascínio do argumento sutil e da pressão da autoridade, sustentando-se como lugar legítimo da verdade.