O Mundo da Mediação Interna
Rivalidade |
Segundo se depreende de René Girard, o desejo nunca recai puramente sobre um objeto. Desejar algo é, na verdade, desejar ser alguém. O problema é que esse alguém que se deseja ser, muitas vezes, é escasso. Ser o maior escritor, ser eleito, ser o maior advogado numa determinada área, ou ser aprovado numa vaga de mestrado, por definição, não são alguéns que todos possam ser. Nisso posso talvez estar me distanciando da ortodoxia girardiana, mas acho que a mediação interna depende fundamentalmente do caráter limitado desse alguém que se quer ser. Mais do que a distância do modelo, o que define a mediação como interna e não externa é a escassez. Se não há limitação, não há mediação interna. Dito isso, cabe a pergunta: vivemos num mundo onde prepondera a mediação interna ou externa?
A meu ver, vivemos num mundo de mediação interna. Segundo a OECD Employment Outlook (2024), a competição por vagas de alto prestígio e remuneração aumentou significativamente nas últimas duas décadas, com uma concentração crescente de candidatos altamente qualificados para poucos postos. O fenômeno é visível também no Brasil: o relatório da Fundação Getúlio Vargas (FGV/IBRE, 2023) mostra que há uma “pressão competitiva crescente” em profissões de alta qualificação, com aumento de 35% no número de candidatos por vaga em setores como direito, tecnologia e saúde. No setor público, os concursos federais e estaduais continuam atraindo números impressionantes: o IBGE registrou mais de 6 milhões de inscrições em concursos públicos apenas em 2023, com médias de centenas (ou milhares) de candidatos por vaga.
Esse cenário de rivalidade tem efeitos inegáveis. Pesquisas de comportamento organizacional (por exemplo, Harvard Business Review, 2022) apontam que o sentimento de rivalidade e comparação entre pares é hoje uma das maiores fontes de estresse no ambiente corporativo. Isso indica que a experiência subjetiva do trabalho é moldada por mediações internas, entre colegas próximos e competidores diretos. Esses dados sugerem que o diagnóstico da mediação externa como preponderante seria simplista. Talvez a externa, numa perspectiva extensa, quantitativa, supere a mediação interna. Passa-se muitas horas em frente às telas, que sugerem modelos distantes. Além, porém, de a geografia do modelo não ser decisiva, numa perspectiva de qualidade e de intensidade, vivemos, de fato, sob a ameaça constante da mediação interna.
A santificação no trabalho, assim, passa por saber lidar com esse tipo de mediação, eis que o desejo do sagrado se corrompe quando o outro é percebido como obstáculo e não como companheiro de caminho. É interessante notar, nesse sentido, que a mediação interna tem seu poder destrutivo dependente da ilusão objetiva. A pessoa realmente acha que ela quer o cargo, e não ser alguém. Se o foco muda do algo para a pessoa, a santidade volta a ser possível, uma vez que a pessoa boa e até ótima não é um alguém escasso. Como diriam os medievais, bonum diffusivum sui.