Trabalho e Abuso
O enfrentamento de condutas abusivas no ambiente de trabalho requer não apenas sensibilidade diante dos fatos, mas também rigor na análise jurídica que permitirá qualificá-los – ou não – como assédio moral. Esse é um tema cuja definição tem passado por uma transformação considerável nos últimos anos, refletindo novas diretrizes normativas e uma progressiva ampliação do conceito em âmbito internacional.
Durante muito tempo, a jurisprudência trabalhista brasileira consolidou a noção de que o assédio moral consistiria em um conjunto de condutas abusivas, repetitivas e sistemáticas, materializadas por palavras, gestos ou atitudes que tivessem o propósito de humilhar e constranger o trabalhador, degradando intencionalmente o ambiente laboral. A caracterização do assédio, nesse modelo, dependia de três elementos fundamentais: a repetição da conduta, sua sistematicidade e a intencionalidade do agente.
Contudo, essa concepção vem sendo desafiada por marcos normativos mais recentes, com destaque para a Convenção nº 190 e a Recomendação nº 206 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ambas de 2019. Nelas, o assédio moral no trabalho passa a ser descrito como um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis – ou mesmo ameaças desses comportamentos – que ocorram de forma única ou reiterada e que objetivem causar, causem ou sejam suscetíveis de causar danos físicos, psicológicos, sexuais ou econômicos ao trabalhador.
No Brasil, a Resolução nº 351/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aplicável no âmbito do Poder Judiciário, adota esse modelo ampliado, reforçando a desnecessidade de comprovação da intenção para a configuração do assédio e acolhendo uma abordagem centrada nos efeitos da conduta sobre a vítima. Trata-se, portanto, de uma mudança paradigmática: a proteção não depende mais da demonstração de dolo ou da habitualidade da conduta, mas se ancora na materialidade do dano causado ou na potencialidade lesiva.
Essa ampliação conceitual, embora mais protetiva à vítima, também apresenta desafios relevantes do ponto de vista da segurança jurídica. A subjetividade que permeia a interpretação desses comportamentos, somada à fluidez dos critérios, pode tornar mais difícil a subsunção dos fatos à norma e abrir margem a defesas centradas na vagueza do conceito. Em termos processuais, isso significa que a parte denunciante deve ser ainda mais precisa na delimitação dos fatos que, somados, configurariam um contexto de assédio moral.
Em situações concretas, portanto, é essencial que se documente de forma cuidadosa e legalmente válida os episódios que compõem o suposto quadro de assédio. No ordenamento jurídico brasileiro, há alguns meios lícitos para se formar provas que demonstrem com clareza o teor das interações e sua possível incompatibilidade com um ambiente de trabalho saudável. É igualmente recomendável que a análise dos fatos seja feita à luz justamente da normalidade das relações de trabalho: nem todo desconforto psicológico decorre de assédio. A convivência profissional envolve diferenças de personalidade, estilos de comunicação e níveis distintos de sensibilidade. O desafio jurídico é isolar, dentro dessa complexidade, o que configura um abuso e não apenas uma fricção inerente ao convívio humano.
Assim, o papel da vítima – ou de quem assessora juridicamente a vítima – é construir, com base em provas objetivas, uma narrativa coerente dos fatos, demonstrando que os danos psicológicos sofridos decorrem de práticas que ultrapassam os limites da convivência tolerável e se encaixam, com razoável segurança, na moldura teórica do assédio moral. A dificuldade é real, mas não intransponível. O avanço do conceito internacionalmente pode e deve ser usado para proteger os trabalhadores, mas sem perder de vista os riscos da indeterminação excessiva, que, longe de fortalecer a proteção jurídica, pode enfraquecê-la.
Não convém esquecer, por fim, que a busca por ambientes laborais mais dignos exige não apenas novos conceitos jurídicos, mas também uma postura cristã que preserve a convivência cotidiana. A norma que protege o trabalhador contra o assédio moral não deve ser, ela própria, fonte de tensão ou desconfiança permanente. Seu espírito é o de promover um ambiente de trabalho mais respeitoso e saudável — algo que exige o compromisso de todos os envolvidos, inclusive daqueles que se sentem vítimas de abusos. Ainda que existam indícios de condutas inadequadas, o enfrentamento dessas situações deve ser feito com firmeza, mas também com serenidade e sem ressentimento, evitando transformar o local de trabalho em um espaço de hostilidade. Como destaquei em A Alegria em Meio às Ruínas, a voz da vítima, ao denunciar o ilícito, deve ser desprovida de rancor — não por resignação, mas porque a denúncia mais eficaz é a que se ancora na verdade e contribui, ao fim, para inaugurar um convívio mais justo. Afinal, o direito que visa proteger os mais vulneráveis deve ser instrumento de pacificação, não de guerra.